Abri a janela e vi que eu não conseguia ver nada. Só de perto. Tentei ler o letreiro luminoso do clube novo de gurizadinha que haviam instalado há algumas semanas no outro lado da rua, e depois de muito tentar continuei não conseguindo…
Então eu andava pelas ruas úmidas e frias de Caxias do Sul olhando para o chão, e ele estava completamente nítido, tudo o que olhava de perto era nítido, mas de longe estava feia a coisa. Minha visão a longa distância estava comprometida, embaçada, fora de foco – maldita miopia. Passei por uma garota linda, mas de calça verde.
Decidi por ir ao médico. Depois de alguns minutos sentado em uma cadeira levemente confortável observando uma garotinha deitada no chão sujo enquanto sua mãe falava no telefone, um médico muito jovem de jaléco branco e calça laranja apareceu na porta, estava com fones de ouvido e disse sorrindo:
– Hofmann!
Levantei surpreso.
– Qual teu problema jovem?
– Problema nas vistas Doutor. Mas já aviso que não gosto de óculos.
– Meu jovem – falou com um sorriso no canto da boca – aqui não tem não gostar!
Passei a usar óculos.
Obviamente, comprei o mais barato e sem frescura de antirreflexo, e quando coloquei ele pela primeira vez minha vida mudou. Eu podia ver tudo com uma clareza incrível, o mínimo detalhe eu podia ver. Via as minúsculas janelinhas dos prédios cortando o horizonte, conseguia ver que ônibus era a cinco quadras de distância, o sorriso da formiga formigando no chão, até desconfiei que se me concentrasse poderia ver através das roupas das gostosas!
Não fazia ideia de que estava tão mal, mas agora as coisas estavam resolvidas, nunca mais iria andar olhando para o chão, e nem forçar os olhos para enxergar algo de longe, nada passaria batido por mim, nenhum detalhe.
Peguei o ônibus para voltar para casa e dei boa tarde para a cobradora, uma jovem usando uma camisa amarela e tênis rosa.
Caralho! Seria o dia do arco-íris?!
Mexi no rosto para ver como estava minha barba e acabei encostando a mão na lente, sujando-a. Tirei e limpei.
Enquanto percebi algumas garotinhas molhando as calcinhas para meu charme de intelectual, ajeitei o topete e algum dedo encostou-se à lente, embaçando-a por completo.
Tirei e limpei. Ao colocar novamente, um pequeno movimento errado com os dedos fez com que encostasse mais uma vez na lente. Tirei e limpei. Coloquei. Algo me irritou o nariz e ao coçar, a lente sujou. Tirei e limpei. Coloquei com todo cuidado e fiquei imóvel.
Ao descer do ônibus encontrei um vizinho chato que se mijou rindo ao me ver de óculos.
– E aí quatro olhos! – ele disse rindo.
– Meu pau de óculos. – Respondi seco.
– Quero ver no trabalho as piadinhas que vão fazer contigo, teu chefe vai pensar que tu é inteligente e vai se ferrar! – Continuou rindo.
– Quem tem chefe é índio. – Respondi seco.
Um rapaz que passava no mesmo instante olhou sério para nós, usava um óculos gigante branco e calça vermelha.
– Ó teu irmão aí, só faltou pra ti a calça vermelha. – Seguiu rindo.
– A calça vermelha esqueci no quarto da tua irmã ontem de noite. – Respondi seco.
– Cara, tu tá muito horrível com esse óculos. – Seguiu fazendo piada.
– Mas no meu caso é só tirar o óculos, já tu é horrível de qualquer jeito. – Respondi muito seco.
– Virou piadista ou coisa parecida? – Perguntou já não rindo tanto.
– Coisa parecida. – Respondi seco.
Mas que puta que pariu tchê!
Apressei o passo e segui meu caminho para casa. A duas quadras uma fila interminável de gente colorida, o céu começava a ficar alaranjado, a noite se aproximava…
“Bah vai bombar hoje esse clube novo de gurizadinha.”
Cheguei e preparei um belo de um cafézão com torrada e biscoito. No primeiro gole de café a lente do óculos embaçou por completo pelo bafo quente.
Mas que merda usar óculos! Devia ter me cuidado quando era jovem.
Lembrei-me do real motivo de tudo isso: O letreiro!
Corri até a janela e li:
Poderia, além de cegueta, ser surdo essa noite!
Abraceraaa!