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Observava da janela do trem a lua cheia, pintando as folhas das árvores com um tom prateado, transformando o assustador da noite em algo encantador. Descrevi em meu bloco de anotações como a mágica da lua. Meu destino naquela viagem era uma pequena cidade afastada de tudo, onde eu estava indo para investigar uma série de crimes horríveis. Quatro pessoas foram encontradas mortas, mutiladas. E daí se inventou um monte de histórias ridículas. E eu já tinha resolvido casos assim, e sabia que na certa, algum psicopata infeliz estava por trás disso, nestas cidades pequenas existe muita gente que acaba enlouquecendo e fazendo estas barbáries. A viagem era longa e cansativa, mas de qualquer forma, o prefeito havia me oferecido uma bela recompensa pela solução do caso. Fechei as cortinas da janela e tentei dormir um pouco, o dia seguinte seria longo.

 

 

Desci do trem e o senhor delegado me esperava. O homem era enorme e usava um chapéu marrom, tinha uma barba de respeito e segurava as rédeas de dois cavalos, e me olhou com ar estranho. A primeira coisa que fez após me cumprimentar foi me entregar um revolver.

 

 

– Detetive, estou muito feliz que você tenha vindo, eu e meus homens já fizemos de tudo para encontrar a pessoa por trás destes crimes. – Me disse apreensivo.

– Fique tranquilo delegado, seja quem for, vamos descobrir.

– A propósito detetive, pensei que você fosse mais velho, alguém com sua fama e tão jovem. – Frisou. Eu com meus 27 anos, sem barba, de altura mediana e magro. Os outros detetives geralmente eram de porte atlético e mais velhos, achei normal a decepção do delegado.

 

 

Passamos pelo meio da pequena cidade, e fiquei surpreso por todas as pessoas ficarem me olhando. A cidade era imunda, cheirava a porcos e fezes e a maioria das casas ficava com as janelas completamente fechadas. A única impressão que tive, além do relaxamento daquelas pessoas, foi de medo em seus olhares. Logo chegamos ao gabinete do prefeito.

 

 

– Você deve ser o detetive!

– Senhor prefeito.

– Sente-se, por favor, aguardávamos sua chegada ansiosamente – Falou o prefeito da cidade, um homem velho, baixo e barrigudo, que fedia a álcool. Sua mão era trêmula, e ele parecia bem agitado. Observei que era canhoto ao largar a caneta da mão esquerda.

– Espero que tenha feito uma boa viagem até aqui detetive.

– A viagem foi boa, obrigado.

– O senhor sabe detetive, o povo está assustado com os últimos acontecimentos. Na noite passada outra garota foi encontrada morta na floresta, era uma moça querida por todos. Muitas pessoas já estão pensando em ir embora da cidade com medo deste assassino.

– Senhor prefeito, me responda, existe algum lugar onde os ataques ocorrem com maior frequência?

– Bem, geralmente na floresta, e a noite.

– Na floresta? Existe algum animal nestas florestas? Como ursos ou até mesmo lobos?

– Já matamos alguns ursos nestas florestas, mas isso já faz um bom tempo detetive, e eu realmente não acredito que tenha sido um urso ou qualquer outro animal.

– Senhor prefeito, preciso que alguém me leve até a floresta.

 

***

 

Dois homens me acompanharam, o delegado era um deles, os dois armados. Levaram-me até o local onde o corpo da moça havia sido encontrado. Havia muito sangue e pedaços da roupa da jovem, típico ataque de algum animal. O urso pardo pode desmanchar uma pessoa se sentir ameaçado, e eu sabia que naquela região havia muitos ursos pardos. Voltamos à cidade, onde fui levado a um pequeno hotel no centro. No caminho notei que as pessoas preparavam algum tipo de celebração ou festa para a noite

 

– Aniversário da cidade. – Disse o delegado, respondendo antes mesmo de eu perguntar.

 

Preferi ficar no quarto, ouvindo a música tocando do lado de fora, além das pessoas que falavam alto, gritavam e festejavam o aniversário da cidade. Olhei pela janela e pude ver que as pessoas estavam dançando enquanto um rapaz tocava violino e outro cantava. Deite-me na cama e dormi, estava muito cansado.

 

Logo cedo acordei num pulo. Batidas fortes na minha porta.

 

– Detetive! Detetive!

 

Abri a porta e entrou o delegado, juntamente com dois homens.

 

– Noite passada, um casal de jovens foi encontrado morto na floresta.

 

 

Fui até o local e aquela foi uma das piores visões que tive em minha vida. A garota estava com marcas enormes de mordidas, o rapaz estava irreconhecível, parecendo uma papa de carne moída com molho de sangue. Me segurei para não vomitar, e percebi que todos fizeram o mesmo.

 

 

– Reúna alguns homens e algumas armas delegado, esta noite vamos ficar de plantão aqui na floresta. – Avisei.

 

 

Logo que a noite começou a cair nos dispersamos e cada um ficou em um ponto diferente, mas todos próximos. O céu foi fechando e logo começou uma garoa fina, que se transformou em uma tempestade grossa e barulhenta. Ainda assim ficamos todos lá, até o amanhecer, nos protegendo da chuva como podíamos. Não houve sinal nenhum do animal.

 

 

Tirei o dia para dar algumas voltas pela cidade. Não notei nada de estranho naquela manhã, mas algo me chamou a atenção. Avistei o prefeito mancando. Dê certo virou o pé, gordo sempre faz gordice. Ou quem sabe tenha corrido a noite toda atrás de uma pobre donzela indefesa? Algo naquele homem me incomodava, o cheiro de álcool ou quem sabe a tremedeira naquelas mãos. Resolvi, por via das dúvidas, colocar o prefeito em minha lista de suspeitos, apesar de achar que mesmo que quisesse fazer mal a alguém não conseguiria, parecia apenas um bêbado gordo e desajeitado.

 

 

Conversei com algumas pessoas, em especial comerciantes, que não tinham nenhuma informação relevante.  Falei com uma garota, amiga da jovem morta. Fiz amizade com um senhor que me deu um bom vinho para beber, falei com algumas crianças que brincavam na rua, conversei com o dono de um bar que me contou toda sua vida, e em seguida voltei para o hotel. Esta noite eu faria diferente.

 

 

Cheguei mais cedo à floresta, caminhei um bom pedaço e subi em uma árvore. A noite foi caindo lentamente. O delegado e seus homens ficaram mais atrás, escondidos com suas armas. Como em um feitiço, senti um sono muito forte, um cansaço que dominou todo meu corpo, e meus olhos começaram a querer fechar. O canto de uma coruja parecia uma canção de ninar, acompanhada dos grilos, até mesmo as árvores pareciam cantar com o vento tocando seus galhos e folhas, e a escuridão brilhante de prata se fez outra vez, fiz uma força absurda para me manter acordado, mas logo adormeci tranquilamente, a dez metros do chão.

 

***

 

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Estava escuro. Corri por entre as árvores, a respiração ofegante ritmada com o pulsar frenético do meu coração, combinando medo e certeza, a morte certa. Estava escuro. Eu podia ouvir o barulho das enormes patas tocando o chão, e dos rosnados que ecoavam pela noite, era questão de tempo para que me pegasse. Imaginei uma mordida pesada no ombro, fazendo com que eu caísse, então começaria a me balançar como se eu fosse um boneco entre seus dentes. Eu não tinha coragem de olhar para trás, apenas corria, esgotado. Estava escuro. A criatura estava se aproximando, e como já havia feito com tantos outros homens, me devoraria, pintando a terra com meu sangue, fazendo de mim mais uma vítima de um crime sem explicação para as pessoas que achassem meu corpo pela manhã. No jornal da cidade estaria estampada a notícia, detetive chamado para desvendar o caso é encontrado no meio da floresta, estraçalhado. Parei e olhei para trás, e um par de olhos vermelhos me observava da escuridão.

 

***

 

Acordei assustado. Voltei em direção à cidade e encontrei os homens, todos dormindo no chão mesmo, ainda era cedo, o sol começava a lançar seus primeiros raios de luz. Descrevi o sonho em meu bloco como a música da floresta. Ao voltarmos para a cidade uma confusão se fazia no centro, gritos e mais gritos, e pessoas chorando. Na rua principal o corpo de uma jovem. As pessoas me olhavam com decepção, pois acreditavam que eu iria desvendar o que estava acontecendo, mas eu estava apenas correndo no escuro, sem pistas, sem suspeitos, apenas corpos encontrados como se alguém tivesse atacado, alguém com dentes e garras, sem coração.

 

 

Ao ligar os fatos, cheguei à conclusão de que certamente não era um homem quem cometia os assassinatos, e sim um animal. Porém, o animal não estava matando gente para se alimentar, ele matava por algum outro motivo. Examinei o corpo da moça e apenas confirmei a ideia. Havia pelos nas unhas da moça, ela lutou com algum animal. Voltei a andar pela cidade, procurando precedentes a ataques assim. Um senhor me contou que o prefeito fora atacado há muito tempo atrás, contudo sobreviveu, saiu apenas com uma enorme marca de garras nas costas, fui até o gabinete.

 

– Senhor prefeito.

– Detetive. Me diga, o que você descobriu até agora? As pessoas já estão duvidando da sua capacidade. – Falou irônico.

– Senhor prefeito, se não se importar, gostaria que me contasse da vez em que foi atacado na floresta.

 

 

O homem recuou na cadeira, arregalando os olhos.

 

 

– Quem te contou isso detetive? – Sua mão tremia como nunca.

– Não vem ao caso senhor prefeito, por favor, prossiga.

– Há muito tempo fui pegar um pouco de lenha na floresta um animal me atacou quando eu voltava para casa à noite, certamente um urso. Apenas me arranhou e foi embora, nada tem a ver com os ataques que estão ocorrendo agora detetive. Tanto é que no dia seguinte alguns homens se reuniram e mataram o animal, veja você mesmo. – Caminhamos até outra sala, onde estava pendurada uma cabeça empalhada de um urso pardo na parede, a boca enorme aberta, mostrando os grandes dentes amarelos, os olhos negros como a noite, fixos aos meus.

 

 

Saí dali um pouco transtornado. Posicionei homens em todos os cantos da cidade, todos armados, inclusive eu. A ordem foi de que ninguém saísse de casa aquela noite, e que todos ficassem atentos a qualquer coisa estranha que acontecesse. Fiquei no telhado da delegacia, que era à frente da prefeitura, exatamente no centro da pequena cidade, onde ao lado ficava a casa do prefeito, e esperei anoitecer. Como sempre a noite chegou bela, a lua gigante no céu, dando o mesmo clima da outra noite no trem, um silêncio mortal. Observei a rua durante horas sem nada estranho acontecer. Quando começava a amanhecer avistei alguém escondido atrás de algumas caixas de madeira do outro lado da rua, não pude ver quem era. A pessoa se arrastou pelo chão e foi até a parte de trás da prefeitura, na direção da casa do prefeito, saindo do meu campo de visão. Desci juntamente com dois homens do delegado até lá silenciosamente e não encontrei ninguém, na casa do prefeito uma janela entreaberta.

 

 

De todas as pessoas com quem eu havia conversado na cidade, o único que parecia esconder algo era o prefeito. Pela manhã ele se dirigiu ao gabinete, e foi neste momento que entrei em sua casa escondido. Uma sala com alguns livros velhos e uma mesa quebrada. O chão parecia ter sido limpo. Na direita uma escada. Subi. No andar de cima uma porta trancada e um quarto vazio. Tentei abrir a porta trancada, mas não consegui, e arrombar não seria algo correto a se fazer. Notei panos molhados, estendidos na janela deste quarto vazio, certamente os mesmos usados para limpar o chão e ao me aproximar notei os panos sujos do que parecia ser sangue, neste momento pude ouvir um barulho na porta de entrada, o prefeito estava voltando.

 

 

Sem ter onde me esconder forcei a porta trancada mais uma vez, e a mesma abriu, entrei. Era uma espécie de escritório, onde havia uma mesa e uma cadeira, e muitos livros e papéis. Símbolos esquisitos, de círculos e estrelas, palavras em escrita que eu nunca tinha visto, e desenhos de demônios, dobrei os papéis e guardei no bolso. Pude ouvir a porta de entrada da casa se fechar, ele havia saído.

 

 

Saí escondido e fui até seu gabinete.

 

 

– Senhor prefeito, podemos conversar? Tenho algumas perguntas para fazer ao senhor.

– Me desculpe detetive, estou muito ocupado agora, volte mais tarde. Ou melhor, volte amanhã. – Me respondeu enquanto folhava alguns papéis. Levantei e fui até a porta, fechei e voltei para frente da mesa dele. O homem largou seus papéis e me olhou.

– O Senhor é insistente, admiro isso, é uma qualidade para sua profissão detetive. Mas acontece que tenho muitas coisas para fazer agora, e o senhor está realmente tomando meu tempo. A ideia de traze-lo aqui foi do delegado, estou vendo em você um jovem assustado, sem saber o que fazer.

– Senhor prefeito, eu amo o que faço, e isso faz de mim um detetive muito bom. Realmente não quero atrapalhar em seus afazeres como líder desta cidade, mas como fui contrato para investigar, preciso lhe fazer algumas perguntas. Diga-me, onde você estava ontem à noite? Passei perto da sua casa e vi panos estendidos na janela pingando sangue.

– Detetive, você está desconfiando de mim? Não seja tolo. – Respondeu rindo. Eu estava em casa com um amigo e algumas moças, estava uma bagunça, estes meus amigos bêbados derrubaram vinho por toda a casa, deu um trabalho muito grande para limpar tudo, e o senhor sabe, não tenho esposa, preciso me virar sozinho. – Continuou rindo.

 

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Vinho? Aquilo nos panos parecia sangue para mim. Voltei para meu quarto e tentei pensar, mas minha cabeça doía, estava com muito sono e cansado. Tentei entender o que dizia naqueles papéis que peguei na casa do prefeito, mas nada fazia sentido. Apesar de jovem, eu já havia solucionado muitos casos em diferentes lugares do país, mas dessa vez era diferente, não havia como culpar uma pessoa, quando as marcas nos corpos eram de dentes e garras.

 

 

Voltei para o telhado e fiquei observando a casa do prefeito. Quando já havia anoitecido ele saiu, a passos rápidos, carregando uma bolsa, e eu o segui. Mantive sempre uma distância considerável dele, mas quando ele chegou à floresta logo o perdi de vista, e eu fui caminhando floresta adentro. Andei um bom bocado, e já não fazia ideia de onde estava quando resolvi dar meia volta, tentando imaginar onde estaria o prefeito. A escuridão já dominava a floresta por completo, e a lua encobrida por algumas nuvens não permitia que eu visse muito além de onde estava. Ouvi um barulho ali perto, eram gemidos retraídos e barulho nas folhas do chão, como se alguém estivesse se debatendo. Aproximei-me com cuidado do barulho que aumentava cada vez mais. No tronco de uma árvore um pedaço de roupa grudado, no chão acabei chutando um chapéu. Saquei o revolver que o delegado havia me entregado logo que cheguei à cidade, e no momento em que as nuvens saíram da frente da lua tudo iluminou a minha frente.

 

 

Debatendo-se no chão estava o prefeito, e eu conseguia ouvir os estalos de seus ossos, que se dobravam de formas impossíveis e seus olhos estavam vermelhos, ele babava como um cão raivoso. Pelos começaram a brotar do seu corpo que se curvou em noventa graus, espichando o pescoço para frente e abrindo a boca, mostrando enormes caninos crescendo lentamente. O homem gordo e baixo estava se transformando em uma espécie de cão enorme na minha frente, e quando me notou olhou fixo nos meus olhos, ainda se transformando. Pude ouvir em seu último ato como ser humano, dizer em uma voz grave e demoníaca:

 

 

– Corra detetive!

 

 

Corri pela floresta exatamente como no sonho, mas desta vez era tudo real. O medo havia me tomado de tal forma que minha cabeça doía e meu corpo todo tremia. Meus ouvidos quase explodiram com um uivo retorcido, que passou do grave para o agudo, já seguido do bater das patas contra o chão, a criatura corria ao meu encontro, e eu ao encontro da morte. Corri como nunca em toda minha vida até não aguentar mais, e ao fim das minhas forças, caí de joelhos sobre folhas secas, e fechei os olhos. Senti o bafo quente atrás de mim, e uma dor terrível rasgando minha carne. Fui atirado longe e caí de frente para a criatura que me encarava, os olhos vermelhos como sangue, famintos pela minha alma, que desesperada gritava, mas era ouvida apenas em meus pensamentos. Minha reação foi sacar a arma que estava na minha cintura e descarregar contra o animal, que assustado com o barulho das balas, correu para dentro da floresta, me deixando caído com uma marca de quatro garras em minhas costas.

 

 

Descrevi em meu bloco de anotações como o homem lobo. E logo na noite seguinte, uivei para lua cheia pela primeira vez.

 

 

Abraceraaa!