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Era uma noite agradável. O lixo espacial transitava ao redor da Terra mantendo uma órbita estável. Em Caxias do Sul, o clima ameno girava em torno dos 20 graus e caindo. Na escada do bar subiam duas garotas de vestidos cintilantes. No Japão já era quase segunda-feira.

 

Eu dei um belo tapa no balcão do bar e pedi uma dose de uísque num copo baixo e sem gelo. Presenciei com água na boca a garota me servir com extrema desenvoltura, marcando dois ou três quadradinhos na minha comanda para então, deslizar o copo em minha direção, com um belo sorriso feito.

 

Tutorial-Como-beber-Whisky

 

Segurei o copo em frente ao rosto, admirando sua beleza. Aproximei e senti o aroma inconfundível do Johnny Caminhador. Respirei fundo e, quando fui beber o primeiro gole para abrir os trabalhos, uma mão áspera e peluda o arrancou de mim e foi de encontro a uma cabeça igualmente cabeluda e também barbuda, acabando com um terço do meu uísque num só gole.

 

– Poxa, acho que minha mulher tá me traindo, eu sou corno. – Disse o ser humano chorando. Quase senti pena.

 

Fitei o copo inquieto.

 

– Cara, essas coisas acontecem o tempo todo. Na verdade, deve ter uns trinta cornos só aqui no bar comprando cerveja. – Falei já levando a mão ao meu uísque.

 

Mas para minha surpresa, ele puxou o copo contra o peito, soluçou duas vezes e desceu mais um generoso gole.

 

– Mas nós éramos tão felizes juntos, até adotamos um poodle. – Seus olhos vermelhos de choro brilhavam de emoção.

 

Continuou falando.

 

– Nos conhecemos aqui mesmo, nesse bar. Ela disse que adorava caras cabeludos e barbudos. Daqui já fomos pra casa dela e na outra semana já estávamos namorando. Um mês depois já morávamos juntos e agora acho que sou corno…

 

Virou modinha gostar de cara cabeludo e barbudo. E aquele cara do topete bonito? Perfume exalando, barba bem feita? Bolas depiladas? – Pensei desapontado. Ele seguiu as lamentações.

 

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– Mas ela me traiu! Eu acho… – Falou alto, já bebendo outro gole. A essa altura, metade do meu uísque jazia naquelas entranhas.

 

“Se você me encontrar no bar, desatinado! Falando alto, coisas cruéis,” – Cantarolei mentalmente.

 

– Bah meu querido, tu não é corno e eu sou péssimo em dar conselhos, então, acho melhor tu procurar tua turma. – Mais uma vez, levei a mão até o copo.

 

Dessa vez fui convicto em direção ao meu uísque. O braço estendido, esticado – mais reto que garganta de cobra – de encontro ao cálice sagrado. As pontas dos dedos coçando e o olhar fixo ao ponto de encontro. O movimento preciso e rápido, como uma flecha rumo ao centro do alvo.

 

Pude sentir a ponta do indicador tocar o copo antes de o cabeludo puxa-lo contra si mais uma vez.

 

– Mas eu não preciso de conselhos, preciso é encher a cara e pegar alguém, nem que seja a mais horripilante das mulheres dessa festa. Hoje, eu tô abraçando urubu e chamando de meu louro. – Já virando o trago novamente, deixando apenas uma lista fina de uísque dentro do copo e voltando a desabar em lágrimas e soluços.

 

Eu nem sabia que era possível chorar tanto por alguém. Talvez eu fosse um bicho humano insensível demais para entender o sofrimento daquela pobre alma barbuda que se apaixonara por uma mulher que, provavelmente, era só mais uma dessas vadias loucas e egoístas. Com certeza se aproveitou da bondade e da inocência para faze-lo de idiota. Ainda por cima, fez do coitado um corno beberrão, chorando no bar e tendo que desabafar com um desconhecido para encontrar um pouco de paz. Me sensibilizei.

 

– Cara, pode ficar com esse uísque pra ti. Eu vou ali comprar outro. – Saí dando dois tapinhas nas costas dele e voltando para o bar.

 

Dei um belo tapa no balcão. As estrelas cintilavam pelo universo sideral. Os vestidos das garotas transitavam numa órbita instável enquanto dançavam em frente ao palco segurando copos finos de bebida doce e colorida. Em Caxias do Sul a temperatura era 19,5 graus e ainda caindo. No Japão, já era segunda-feira.

 

Assisti a reprise da linda guria do bar – dessa vez mais artisticamente – me servir deslizando um copo baixo de uísque sem gelo. Marcou dois ou três quadradinhos na minha comanda…

 

Tutorial-Como-beber-Whisky

 

Pude sentir o aroma… Ao me preparar para descer o primeiro gole da noite, uma mão peluda apareceu mais uma vez, me arrancando o copo.

 

– Talvez tu tenha razão. Talvez eu nem seja corno. – Disse o cabeludo faceiro, descendo um belo gole do meu uísque, de novo.

 

Com uma veia de ódio saltada na testa, fiz uma cena, gritando e apontando pro cabeludo.

 

– TÃO VENDO ESSE CABELUDO FILHO DA PUTA? É UM BAITA DUM CORNO!

 

***

 

Quando enfim bebi o primeiro gole de uísque, as garotas de vestido já dançavam no espaço. Em Caxias do Sul, o lixo transitava pelas ruas numa órbita geodésica, fazendo sempre o mesmo percurso. No Japão ainda era segunda-feira.

 

 

Abraceraaa!